sábado, 18 de janeiro de 2014

Receita de mulher =Vinicius de Moraes=


As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental.
É preciso Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível.
É preciso Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque Como o âmbar de uma tarde.
Ah, deixai-me dizer-vos Que é preciso que a mulher que ali está como a
corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre
um templo e Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então Nem se fala,
que olhem com certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida!)
é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras;
que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as
pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é
porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha,
e em seguida A mulher se alteia em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila
uma doce relva com aroma próprio Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos De forma que a cabeça dê por vezes
a impressão De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre Flores sem mistério.
Pés e mãos devem conter elementos góticos Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos,
nos braços, no dorso e na face Mas que as concavidades e reentrâncias
tenham uma temperatura nunca inferior A 37º centígrados, podendo eventualmente
provocar queimaduras Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e Que se coloquem sempre para
lá de um invisível muro de paixão Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja
em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos Ao abri-los ela
não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha;
parta, não vá E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade De pássaro;
e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita
de toda a criação inumerável.

=Vinicius de Moraes=

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