domingo, 19 de janeiro de 2014

Nossa Truculência =Clarice Lispector=


Quando penso na alegria voraz com que
comemos galinha ao molho pardo, dou-me
conta de nossa truculência. Eu, que seria
incapaz de matar uma galinha, tanto gosto
delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando
minhocas. Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca. Nós somos canibais, é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos. E, quem sabe,
não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos
gente com seu sangue. Minha falta de coragem de matar
uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde,
espanta-me, mas aceito. A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida.
A truculência. É amor também.

=Clarice Lispector=

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